22 janeiro 2010

O que Vejo em Milton Friedman



Impressionou-me o falar deste senhor. Sua expressão me é simpática e realmente é admirável o desenrolar fácil e sereno de suas convicções. No entanto, o que segue aqui é uma cascata de críticas às ideias que este senhor simpático proferia e que encontra no coração de muitos jovens um ressoar funtamentalista. Sei do perigo e da arrogância desta empreitada - o senhor aí foi uma autoridade e até ganhou o prêmio Nobel -, mas me sinto livre e pronto para fazê-la. Espero também não estar sendo conduzido por um fio fundamentalista ao redigir estas linhas, mas no estado atual, é o que posso fazer. Nisto, a que nós denominamos ciência, o ceticismo retumbante que se faz necessário para que avancemos continuamente extingue facilmente a chama propulsora das almas investigadoras. É muito mais cômodo achar uma boa ideia e se casar com ela para todo o sempre do que ser capaz de se regenerar continuamente. Estamos à procura do que seja este reiventar humano...
Primeiramente, o senhor critica um mundo tão ignóbil, perplexo ao receber a flexada por si mesmo desferida e propõe outro mundo tão ideal, de árdua construção porém preciso à maneira de relógio suíço. Infelizmente, este senhor que vos fala tão calma e convincentemente parece esquecer-se de que há uma coisa chamada sociedade; que é difícil pensar no fazer humano a partir de um único indivíduo isolado, sozinho. Afinal, até para aprender precisamos de alguém, e até para nos interessarmos por aprender algo, precisamos de alguém - para nascermos, precisamos de uma mãe, se bem que a ciência já vem mudando isto. O ponto de partida que sustenta todo o vigoroso pensamento deste risonho senhor é o de indivíduo - ou seja, não existe sociedade, só a aglomeração de indivíduos livres - e aí parece haver um bocado de prepotência, mesmo que implícita. A coordenação surge espontaneamente como meio de sobrevivência - a cooperação voluntária que Friedman defende -, e se formaliza na incrível capacidade civilizatória que o homem possui - muito superior a qualquer tendência semelhante que se verifica no reino animal - e que se dá, quase sempre, coercitivamente. A criança institivamente leva objetos à boca - ela é só prazer e busca sentir, e talvez compreender, o mundo a sua volta - mas mal sabe ela que este ato prazeroso de descoberta pode lhe trazer uma infecção letal. É a repreensão coercitiva da mãe que pode lhe salvar a vida. Portanto, eu não entendo esta abjeção à coerção, à mínima coerção que houver, mesmo sendo ela prerrogativa necessária à vida em sociedade. Fica claro que um argumento destes só continua válido se penso somente enquanto indivíduo, não havendo sociedade, portanto, conclui-se que a teoria subjacente ao discurso de Friedman é uma teoria narcísica, o umbigo é o centro do mundo. A história humana parece mostrar que o homem saiu da total liberdade e sempre caminhou, coletivamente, em direção à lei. É mais seguro, ou menos perigoso, viver sob a égide da lei. "A liberdade talvez seja um caminhozinho no dentro de ferro de grandes prisões" disse Guimarães Rosa, e de fato, a total liberdade é a maior de todas as prisões, pois dela não há mais para onde fugir, nem gravidade onde se segurar.

Por outro lado, não quero também aqui causar a impressão de que sou um partidário convicto da coerção - incluido suas formalidades estatais. O Estado, à medida em que seus poderes inflamam para além de uma caldeira segura, reascende nos corações e nas mentes daqueles que o governam o instinto insano e humano da plutocracia. Devemos ponderar também que o Estado é uma abstração que adquire contornos singulares a cada cultura ou comunidade na qual se encontre circunscrito, de modo que afirmar que o Estado é aqui e no Zimbábue, Na Lua e em Marte uma erva daninha à sociedade é um grande absurdo. Ocorre, acho eu, é que de centenas de séculos, o que a memória civil resgata é a imagem de um Estado santo e opressor, déspota e incerto como um Deus grego. Um estudo preliminar, porém sério a respeito de um Estado - se já não há -, seria o que chamaria de "composição orgânica" do Estado. Este conceito, embora homônimo a conceito encontrado em "O Capital" de Karl Marx, averiguaria afinal que espécies de pessoas que compõem o Estado, qual o grupo majoritário e que interesses defenfem e como essa composição evoluiu no tempo. Se disso emergisse uma válvula sistemática que impedisse a perpetuação de parasitas ao comando do Estado, a civilização terá dado um grande passo.

A análise de Friedman sobre o mercado de trabalho também me parece simplista. Ela impressiona aos menos atentos, mas não se recompõe após uma averiguação mais detalhada. Primieramente, Friedman afirma que a taxa de Salário Mínimo discrimina aqueles que não possuem habilidades suficientes para merecer ganhar 2 US$ por hora. A lei seria um abrigo apenas para profissionais qualificados, discriminando adolescentes e negros por não serem dotados, na média, de habilidade necessária para ganhar os 2 US$/hora. Acontece que havendo ou não um salário mínimo, a situação dos desqualificados continua a mesma. Num sistema sem base salarial, os desqualificados continuariam discriminados, poderiam até estar empregados, mas em condição de sub-emprego e ganhando somente aquilo que precisam para sobreviver ou talvez nem isso. Segundo, a demanda por emprego está mais atrelada ao nível de Investimento e a expectativas positivas de ganhos por parte do empregador que ao nível salarial. Terceiro, será que o mercado identifica e discrimina perfeitamente o trabalhador que merece ganhar 2 US$/hora daquele que não merece ganhar tal quantia? Nos EUA havia, em décadas de segregação racial, e certamente ainda há barreiras que escolhem os trabalhadores qualificados por vias que não só as de qualificação profissional.

Economicamente, parece não haver fundamento sólido para acreditar que ação individual guia a sociedade como um todo para um lugar melhor. Grandes ondas de crescimento econômico de nações sempre demonstraram ter ações coordenadas do Estado. Pesquisem o crescimento dos EUA, da Alemanha e do Japão no século XIX e verão isto. A Crise de 29 é o maior exemplo. Friedman falha ao culpar a ineficência governamental pela Grande Depressão - por esta época a abrangência da ação governamental era mínima, certamente muito menor do que a verificada hoje. O mercado era o grande coordenador da economia. E este senhor também cai em contradição, primeiro afirmando que o desastre atual (década de 70) só não é maior porque a ineficiência é muito grande, ao mesmo tempo que condena a derrocada da crise 1929 a suposta ineficiência do Estado no pré-crise.

De maneira alguma o pensamento de Friedman é um pensamento reformador. Pelo contrário, na ciência econômica, seu pensamento representa um refinamento de ideias antigas, ideais da economia clássica tradicional do século XIX e do início do século XX. As raízes do liberalismo são antigas, estão nos Fisiocratas de Quesnay, e no utilitarismo de Hume. As inferências de Friedman são complexas - seus trabalhos sobre economia são recheados de processos econométricos ardilosos - mas repousam sobre premissas duvidosas. A Teoria Geral de Keynes veio justamente a preencher um vaco intelectual - a teoria clássica não é falsa, mas trata de um caso especial do mundo real; a visão de Keynes trata do caso Geral do mundo real, daí "Teoria Geral".

No mínimo é curioso que Friedman, um senhor simpático, economista radical e ultra-conservador, guerreiro de linha-de-frente do exército pelas liberdades individuais, tenha servido ao Chile corrupto e assassino de Augusto Pinochet. É curioso que ele, um empirista que afirmava a atração por coisas que funcionassem, tenha defendido ardentemente suas ideias até a sua morte em 2006, após ter assistido à derrocada dos regimes monetários de metas monetárias na década de 80 - herdeiros de suas preces monetaristas. Espero que tenha sido uma fé inabalável que o tenha seguido na concepção de suas idéias e não um charlatanismo intelectual.